MEU CORAÇÃO
... NÃO SEI POR QUÊ...
Beni Galter
Um piano, uma flauta, duas clarinetas, um contrabaixo, um cavaquinho, uma
bateria, e o melhor e mais harmonioso instrumento musical que possuía
a música brasileira da época – a voz de Orlando Silva – foram
utilizados para a gravação de uma página definitiva
da música popular em nosso país: "Carinhoso", de Pixinguinha,
com letra de João de Barro.
Esta gravação aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, nos
estúdios da RCA Victor, no dia 28 de maio de 1937; e a matriz deste
disco recebeu o nº 34.181. Orlando Silva, por esta época, era
pouco mais que um menino. Tinha apenas 22 anos de idade.
Pixinguinha, o autor da melodia do samba-chôro carinhoso, nasceu
no bairro carioca de Piedade, no fim do século passado, precisamente
no dia 23 de abril de 1898, dia de São Jorge.
Alfredo Vianna da Rocha Filho logo seria "Pixinguinha". Desde pequeno,
seu interesse maior sempre foi a música. As letras, a escola, o
futebol não exerciam nenhum fascínio sobre o garoto, que
ficava vidrado, ouvindo as músicas que o pai, o senhor Alfredo Vianna
executava em sua flauta.
O menino ficava encolhido num canto da sala, embevecido com os sons que
o pai extraia do instrumento. Quando junto com alguns amigos executava
polcas e lundus, naqueles saraus tão em moda no fim do século
passado e começo deste.
Quando o pai ou a mãe lembrava o adiantado da hora, dizendo que
não era hora de "criança estar acordada" o resignado Alfredinho
se retirava para o quarto, sem nunca protestar. A sua avó, dona
Ediwirges, africana de nascimento, sabia quão difícil era
para ele deixar aqueles músicos incríveis, para simplesmente
ir dormir, deixando de ouvir aqueles senhores maravilhosos, e as notas
divinas que cada um extraía de seu instrumento. Mas Alfredinho obedecia.
E a velha Ediwirges, aprovando o comportamento do neto, dizia em seu dialeto
natal "Pizindin", que quer dizer menino bom.
A molecada da rua concordava com a velha Ediwirges – Alfredinho era de
fato batuta. Com o tempo, Pizindin, misturado ao "bixiguinha", que era
seu apelido na rua por causa das marcas deixadas pela varíola ,
viraria "Pixinguinha", apelido do maior músico brasileiro daquele
e de todos os tempos.
Carlos Alberto Ferreira Braga, "Braguinha", ou "João de Barro",
o autor da letra de Carinhoso, e carioca do bairro da Gávea, onde
nasceu a 29 de março de 1907. Grande compositor, autor de muitos
sucessos de músicas de carnaval e também românticas
de meio de ano.
Podemos afirmar sem medo que, sem Braguinha, o carnaval brasileiro jamais
seria o que foi, musicalmente falando. Linda Lourinha, Moreninha de Praia,
Touradas em Madri, Pirata da Perna de Pau, Chiquita Bacana, Balancê
... são algumas das composições de Braguinha, que
são cantadas até hoje nos bailes de carnaval, nos salões
de todo o nosso país.
Orlando Garcia da Silva, o maravilhoso criador do imortal "Carinhoso",
nasceu no bairro do Engenho de Dentro, na cidade do Rio de Janeiro, dia
03 de outubro de 1915, e morreu no dia 07 de agosto de 1978, vítima
de acidente cardio vascular esquêmico, às 16:45hs no hospital
Graffe Gingle, aos 63 anos incompletos. Foi dem dúvida o cantor
mais famoso do Brasil. Desde seu aparecimento em meados dos anos 30, seu
sucesso foi estrondoso, vindo a estabelecer uma nova maneira de cantar,
uma revolucionária forma de dizer as letras das melodias, dando
a elas um colorido próprio, e tão especial, que colocava
em êxtase os seus admiradores em todo o país.
No princípio, ao atender o pedido de Bororó para que ouvisse
cantar aquele rapaz magrinho e acanhado que buscava uma oportunidade; Chico
Alves achou que se tratava de "mais um" daqueles que o procuravam diariamente
em busca de ajuda para "entrar para o rádio" como se dizia na época,
tentando escapar de uma vida de pobreza e sem esperanças futuras.
Embora não despusesse de tempo, Chico não poderia negar um
pedido ao grande compositor Bororó.
Ao cumprimentar o rapaz moreninho de cabelos ondulados que Bororó
lhe apresentava, Chico sentiu pelo rapaz um sentimento de simpatia e quase
piedade. Afinal, não custava nada ouvi-lo.
- "Vamos pro meu carro, Bororó. Afinal, o moço não
vai cantar aqui na rua não é?" Francisco Alves abriu a porta
dianteira do automóvel, virou-se, abriu a porta traseira e pediu
ao jovem que se sentasse no banco de trás. Bororó ficou em
pé, na calçada observando.
- Nada de violão – disse Chico – Quero
ouvir apenas a sua voz.
- Cante alguma coisa pra eu ouvir.
- O que, por exemplo? – perguntou Orlando.
- Qualquer coisa, algo que você ache que
cante bem.
- O senhor conhece a valsa "Lágrimas"?
Pode ser esta?
Diante do assentimento de Francisco Alves, o maior cantor do Brasil da
época, o quase menino Orlando Silva concentrou-se e, sabendo que
daquele teste dependeria todo o seu futuro e provavelmente toda a sua vida,
respirou fundo e soltou a voz:
- Ai ... deixa-me chorar ... para suavizar ...
O que não sei dizer ... mas sei sentir
...
E Orlando Silva seguiu cantando num estilo todo seu, que punha por terra
aquelas fórmulas batidas dos seresteiros antigos, mostrando a um
Chico Alves boquiaberto, um estilo vocal até então desconhecido,
que dava ênfase à interpretação melódica
essencialmente, sem os exageros dramáticos utilizados por quase
todos os cantores de então.
Na realidade, Orlando Silva acabava de inventar o verdadeiro "Canto Interpretativo".
Chico Alves tinha a certeza de ter diante de si, naquele momento, talvez
o maior talento vocal do país, em todos os tempos.
Pouco tempo depois, aquele jovem quase menino, levado pelas mãos
experientes do "Velho Chico", estreava num programa na Rádio Cajuti,
no Rio de Janeiro, dando início à carreira mais fulminante
que se tem notícia na radiofonia brasileira.
Numa tarde, lá pelo princípio de 1937, Pixinguinha convidou
o seu amigo Orlando Silva, cantor iniciante e já de grande sucesso,
para ajudá-lo numa apresentação, numa festa de casamento,
que iria ocorrer lá no bairro de Bangu. Os rapazes do conjunto regional
que Pixinguinha dirigia, estariam presentes, e até o "astro" Chico
Alves também deveria ir. Orlando Silva aproveitou uma carona no
carro de Chico Alves e compareceu.
A presença do "Rei da Voz", e de Orlando Silva, o novo astro da
música popular, causou um enorme reboliço no bairro, com
uma multidão se acotovelando na rua, para poder ouvi-los cantando
no fundo da chácara onde se realizava a festa. A certa altura Pixinguinha
executou acompanhado do regional, um samba-chôro, e em seguida uma
valsa que deixaram Orlando Silva extasiado.
Orlando então pediu a Pixinguinha autorização para
gravar as duas músicas, pois havia gostado muito de ambas. O maestro
explicou: "Compus estas músicas há mais de vinte anos, e
o pessoal acham que já estão fora de moda". O "chôro"
eu já gravei com orquestra, e o João de Barro andou mexendo
numa letra pra ele. A valsa ainda está inédita. Na segunda-feira,
a gente conversa e acerta tudo.
Desta forma simples e despretenciosa, foram gravadas no dia 28 de maio
de 1937, no estúdio da RCA Victor, na cidade do Rio de Janeiro,
duas obras primas da nossa música popular – a valsa "Rosa", cuja
matriz recebeu o número 23.181, e o samba-chôro "Carinhoso",
música até hoje regravada por artistas atuais, preservando
desta forma uma obra musical que por si só, possui intensa luz própria.
Santa Bárbara d’Oeste, 06
de Setembro de 1998
Beni
Galter
Beni
Galter é radialista e empresário.
Reside
em Santa Bárbara D'Oeste, Estado de São Paulo.
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