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Um delegado "daqueles"...

Esta crônica é autobiográfica, inspirada em meu pai, Pedro Júlio Pinto, que foi Delegado de Polícia em Planalto, por volta de 1957.

Em crônicas autobiográficas, eu costumo mudar os nomes de personagens reais para respeitar sua privacidade.

Exceção feita ao Delegado Pedro Júlio, claro...

Oriza Martins

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Um Delegado "daqueles"...

Oriza Martins Pinto

          Pedro Júlio, o pai da pequena Isa, era uma dessas personagens que nasceram para marcar presença onde quer que passasse. Quando jovem, sua família perdera a fazenda em que viviam, em decorrência de grandes dívidas contraídas pelo irmão mais velho. Assim, de patrões, tornaram-se empregados. Aos poucos, todavia, foram restabelecendo suas vidas. 
         Quando Isa nasceu, Pedro Júlio era proprietário de uma “venda” de estrada, próxima a Planalto. Depois, tornou-se administrador da fazenda onde Isa passou os primeiros anos de sua infância e cuja casa-sede encontrava-se à pequena distância de uma quadra da Igreja Matriz da cidadezinha, possibilitando-lhe, dessa forma, vivenciar simultaneamente experiências tanto do campo quanto da cidade.
         Pedro Júlio não tivera grandes estudos, porém era dotado de uma inteligência especial, forte senso de liderança e boa dose de humor. Adorava programar festividades na fazenda. Costumava fazer a montagem de um estrado onde os homens podiam dançar o cateretê ou catira, um sapateado que ribombava no chão de madeira, ao som das violas caipiras. Nas épocas de festividades dos Santos Reis, Pedro Júlio acompanhava as caravanas da folia, nas visitas aos lares e, na grande festa, vestia-se de palhaço para duelar pela princesa.
        
        Era  um homem bonito  e gostava de se vestir à moda gaúcha, ostentando longas botas, bombachas e lenço no pescoço, além de viver estalando chicotes - que ele denominava “rebengues” - e exibindo as indefectíveis esporas que riscavam o assoalho da casa-sede, provocando um barulho que a pequena Isa haveria de guardar na memória:
         – Réc, réc, réc...
         Naqueles tempos, em meados do século vinte, não havia Delegados de Polícia suficientes para atender à demanda de todas as cidades. Assim, nomeavam-se Delegados-suplentes, dentre cidadãos idôneos, nas comunidades.
         Por essa razão, um dia, Pedro Júlio viu-se conduzido ao cargo de Delegado de Polícia de Planalto, um motivo de orgulho para a pequena Isa.

          Pedro Júlio revelar-se-ia uma figura sui generis no cargo de Delegado: folclórico, para se dizer o mínimo, mas sua capacidade de liderança constituía um fator de tranqüilidade para as famílias de Planalto, onde era temido pelos infratores e respeitado por todos. Enérgico, determinado, costumava caçar bandidos a cavalo, pelas matas, trazendo-os no laço ou na unha, à moda do velho-oeste americano. Sempre estalando chicotes e repicando as esporas no chão:
         – Réc, réc, réc...


         Como Delegado, Pedro Júlio, às vezes, demonstrava um senso particular de justiça. Certa vez, após capturar um homem que furtara imagens de uma capela da comunidade, Pedro Júlio obrigou-o a ir de casa em casa, em Planalto, revelando ser um ladrão de igrejas, mostrando o produto do roubo e, de joelhos frente à residência, pedindo perdão a cada família. Foi um acontecimento inesquecível: o povo seguindo-os, e parte da justiça sendo feita...


         Era costume as pessoas jogarem baralho nos bares. Um dia, Pedro Júlio, o Delegado, cismou de proibir a jogatina. Percorreu todos os bares, recolhendo os baralhos e advertindo os jogadores escandalosamente. Quando chegou em casa, na pensão de sua mulher, o que ele encontrou? Sua filhinha, a pequena Isa, e vários amigos... jogando baralho! Lei é lei e vale para todos: foi aquele esparramo geral...

          A cidadezinha de Planalto contava com um pequeno salão onde, às vezes, quando o Delegado permitia, havia bailes, ao som de acordeões ou de uma vitrola. Mas a cidade não possuía, ainda, rede de energia elétrica. As luzes funcionavam apenas no período de seis da tarde até à meia-noite, alimentadas por um grande gerador que ficava nas dependências da Prefeitura. E quem controlava o gerador? O Delegado, Pedro Júlio, naturalmente... 
         Numa época de carnaval, os jovens estavam doidos para curtir um bailinho. Mas o Delegado encontrava-se mal-humorado, não queria permitir. A turma apelou, então, para a pequena Isa, que foi tentar demover o pai dessa intransigência, até que, na terça-feira, último dia do carnaval, Pedro Júlio deixou-se comover pelos pedidos da filhinha, porém avisou:
         – Podem pular carnaval hoje, mas até à meia-noite, apenas! À meia-noite, em ponto, vocês sabem que eu desligo o gerador, e todos ficarão no escuro!
         Tudo bem! Os jovens de Planalto ligaram a vitrolinha e pularam carnaval até pouco antes da meia-noite. Quando deu meia-noite, o baile acabara e todo mundo, embora a contra-gosto, já havia sumido, ninguém mais se encontrava no salão. Pedro Júlio, entretanto, jocosamente, permaneceu a noite toda com o gerador ligado, na Prefeitura. De manhã, a pequena Isa viu quando o Delegado chegou em casa, sorriso maroto nos lábios, com cara de gato que comeu o canário, e as eternas esporas repicando:
          – Réc, réc, réc... 
          – Ai, que ódio! – diziam os jovens, ao saber da peraltice do Delegado.

          Na escola, a pequena Isa costumava enfrentar a idiossincrasia do Murilo, um jovem da comunidade que substituía os professores, artigo raro em Planalto. Na verdade, o comportamento de Murilo era tão irreverente quanto o das crianças.
          Um dia, uma das alunas “queridinhas” do professor Murilo pediu para ir lá fora tomar água. O professor autorizou. Mais tarde, a pequena Isa pediu para ir ao banheiro.
          – Não! Você, não! – respondeu o Murilo. 
          Ele devia ter lá seus critérios para permitir ou não...
          Isa insistiu várias vezes.
          - Não! - dizia o Murilo, do alto de sua autoridade.
          Isa já estava acostumada com a birra do Murilo contra ela e costumava conformar-se, dar de ombros, mas, naquele dia, ela realmente necessitava ir ao banheiro.
          É curioso que o Murilo, conhecendo as peculiaridades do Delegado Pedro Júlio fosse tão embirrado com a filha dele, uma menina curiosa demais, peralta demais, falante demais, mas aluna brilhante do ponto de vista da aprendizagem. De certa forma era um desafio por parte dele, talvez inconsciente.
          Na hora do recreio, que durava meia hora, os alunos residentes próximo à escola costumavam ir lanchar, até mesmo almoçar, em casa. Naquele dia, passando mal, a pequena Isa dirigiu-se para casa, mas não tomou lanche nem almoçou. Foi direto para o banheiro e lá permaneceu por um bom tempo. A cozinheira da pensão de sua mãe, em vão, tentou fazê-la comer. Isa retornou à escola.
          No mesmo dia, mais tarde, antes do final da aula, toda a escolinha de Planalto testemunharia um terremoto.  Pedro Júlio, o Delegado, literalmente enfezado, ao tomar conhecimento do fato, obrigou a direção da escola a convocar para fora do prédio todos os professores e suas classes. Ali, exorbitando do cargo, mesclou sua indignação de pai com a condição de autoridade policial, e expôs o professor a uma situação vexatória, passando-lhe a maior bronca, em público, por negar à sua filha o direito de ir ao banheiro. Isa, em seu mundinho de conceitos pueris, sentia-se orgulhosa, diante de todos, e justiçada. 
          No dia seguinte, o professor Murilo determinou, radicalizando:
          – A partir de hoje, ninguém mais precisa pedir para sair da classe, tomar água ou ir ao banheiro! Basta chegar e dizer: “Seu Murilo, eu vou lá fora”. Eu não quero mais nem saber o que vocês vão fazer lá fora!
          Dito e feito! A partir daquele dia, os alunos deitaram e rolaram. A todo momento, alguém se levantava e dizia ao Murilo:
           – Seu Murilo, eu vou lá fora.
           Inclusive a pequena Isa, naturalmente!
           – Seu Murilo, eu vou lá fora.
          Murilo só dava uma olhada,  com cara de mau-humor.
          Foi uma pândega!


          Em seu processo de amadurecimento, Isa compreenderia, com o tempo, que Pedro Júlio, embora tendo o direito de reclamar como pai, abusara de sua função de Delegado, pois os assuntos da Educação competem a outras formas de autoridade.
           Mas a lembrança do orgulho sentido por ver-se tão calorosamente defendida por aquele pai-leão permaneceria indelével para a pequena Isa, ao lado de tantas outras situações vividas a seu lado, folclóricas, divertidas, bizarras, irreverentes, inesquecíveis...
          Anos depois, na juventude, assistindo à novela “O Bem Amado”, de Dias Gomes, Isa recordar-se-ia com saudades de seu pai, o Delegado Pedro Júlio, suas extravagâncias, seus hábitos peculiares, especialmente o estalar dos chicotes e o repicar das esporas:
          – Réc, réc, réc, réc...

 

             Oriza Martins Pinto

 

Há outras histórias curiosas envolvendo do Delegado Pedro Júlio, as quais serão contadas em novas oportunidades.

 

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