Um Delegado "daqueles"...
Oriza Martins Pinto
Pedro Júlio, o pai da
pequena Isa, era uma dessas personagens que nasceram para marcar presença
onde quer que passasse. Quando jovem, sua família perdera a fazenda em que
viviam, em decorrência de grandes dívidas contraídas pelo irmão mais velho.
Assim, de patrões, tornaram-se empregados. Aos poucos, todavia, foram
restabelecendo suas vidas.
Quando Isa nasceu, Pedro Júlio era
proprietário de uma “venda” de estrada, próxima a Planalto. Depois,
tornou-se administrador da fazenda onde Isa passou os primeiros anos de sua
infância e cuja casa-sede encontrava-se à pequena distância de uma quadra da
Igreja Matriz da cidadezinha, possibilitando-lhe, dessa forma, vivenciar
simultaneamente experiências tanto do campo quanto da cidade.
Pedro Júlio não tivera grandes
estudos, porém era dotado de uma inteligência especial, forte senso de
liderança e boa dose de humor. Adorava programar festividades na fazenda.
Costumava fazer a montagem de um estrado onde os homens podiam dançar o
cateretê ou catira, um sapateado que ribombava no chão de madeira, ao som
das violas caipiras. Nas épocas de festividades dos Santos Reis, Pedro Júlio
acompanhava as caravanas da folia, nas visitas aos lares e, na grande festa,
vestia-se de palhaço para duelar pela princesa.
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Era um homem bonito e gostava de se vestir à moda gaúcha, ostentando
longas botas, bombachas e lenço no pescoço, além de viver estalando
chicotes - que ele denominava “rebengues” - e exibindo as indefectíveis
esporas que riscavam o assoalho da casa-sede, provocando um barulho que
a pequena Isa haveria de guardar na memória:
– Réc, réc, réc...
Naqueles tempos, em meados do
século vinte, não havia Delegados de Polícia suficientes para atender à
demanda de todas as cidades. Assim, nomeavam-se Delegados-suplentes,
dentre cidadãos idôneos, nas comunidades.
Por essa razão, um dia, Pedro Júlio viu-se conduzido ao cargo de
Delegado de Polícia de Planalto, um motivo de orgulho para a pequena
Isa.
Pedro Júlio revelar-se-ia uma figura sui generis no cargo de
Delegado: folclórico, para se dizer o mínimo, mas sua capacidade de
liderança constituía um fator de tranqüilidade para as famílias de
Planalto, onde era temido pelos infratores e respeitado por todos.
Enérgico, determinado, costumava caçar bandidos a cavalo, pelas matas,
trazendo-os no laço ou na unha, à moda do velho-oeste americano. Sempre
estalando chicotes e repicando as esporas no chão:
– Réc, réc, réc... |
Como Delegado, Pedro Júlio, às
vezes, demonstrava um senso particular de justiça. Certa vez, após capturar
um homem que furtara imagens de uma capela da comunidade, Pedro Júlio
obrigou-o a ir de casa em casa, em Planalto, revelando ser um ladrão de
igrejas, mostrando o produto do roubo e, de joelhos frente à residência,
pedindo perdão a cada família. Foi um acontecimento inesquecível: o povo
seguindo-os, e parte da justiça sendo feita...
Era costume as pessoas jogarem
baralho nos bares. Um dia, Pedro Júlio, o Delegado, cismou de proibir a
jogatina. Percorreu todos os bares, recolhendo os baralhos e advertindo os
jogadores escandalosamente. Quando chegou em casa, na pensão de sua mulher,
o que ele encontrou? Sua filhinha, a pequena Isa, e vários amigos... jogando
baralho! Lei é lei e vale para todos: foi aquele esparramo geral...
A cidadezinha de Planalto
contava com um pequeno salão onde, às vezes, quando o Delegado permitia,
havia bailes, ao som de acordeões ou de uma vitrola. Mas a cidade não
possuía, ainda, rede de energia elétrica. As luzes funcionavam apenas no
período de seis da tarde até à meia-noite, alimentadas por um grande gerador
que ficava nas dependências da Prefeitura. E quem controlava o gerador? O
Delegado, Pedro Júlio, naturalmente...
Numa época de carnaval, os jovens
estavam doidos para curtir um bailinho. Mas o Delegado encontrava-se
mal-humorado, não queria permitir. A turma apelou, então, para a pequena
Isa, que foi tentar demover o pai dessa intransigência, até que, na
terça-feira, último dia do carnaval, Pedro Júlio deixou-se comover pelos
pedidos da filhinha, porém avisou:
– Podem pular carnaval hoje, mas até
à meia-noite, apenas! À meia-noite, em ponto, vocês sabem que eu desligo o
gerador, e todos ficarão no escuro!
Tudo bem! Os jovens de Planalto
ligaram a vitrolinha e pularam carnaval até pouco antes da meia-noite.
Quando deu meia-noite, o baile acabara e todo mundo, embora a contra-gosto,
já havia sumido, ninguém mais se encontrava no salão. Pedro Júlio,
entretanto, jocosamente, permaneceu a noite toda com o gerador ligado, na
Prefeitura. De manhã, a pequena Isa viu quando o Delegado chegou em casa,
sorriso maroto nos lábios, com cara de gato que comeu o canário, e as
eternas esporas repicando:
– Réc, réc, réc...
– Ai, que ódio! –
diziam os jovens, ao saber da peraltice do Delegado.
Na escola, a pequena Isa
costumava enfrentar a idiossincrasia do Murilo, um jovem da comunidade que
substituía os professores, artigo raro em Planalto. Na verdade, o
comportamento de Murilo era tão irreverente quanto o das crianças.
Um dia, uma das alunas
“queridinhas” do professor Murilo pediu para ir lá fora tomar água. O
professor autorizou. Mais tarde, a pequena Isa pediu para ir ao banheiro.
– Não! Você, não! – respondeu o
Murilo.
Ele devia ter lá seus critérios
para permitir ou não...
Isa insistiu várias vezes.
- Não! - dizia o Murilo, do alto de
sua autoridade.
Isa já estava acostumada com a
birra do Murilo contra ela e costumava conformar-se, dar de ombros, mas,
naquele dia, ela realmente necessitava ir ao banheiro.
É curioso que o Murilo, conhecendo
as peculiaridades do Delegado Pedro Júlio fosse tão embirrado com a filha
dele, uma menina curiosa demais, peralta demais, falante demais, mas aluna
brilhante do ponto de vista da aprendizagem. De certa forma era um desafio
por parte dele, talvez inconsciente.
Na hora do recreio, que durava meia
hora, os alunos residentes próximo à escola costumavam ir lanchar, até mesmo
almoçar, em casa. Naquele dia, passando mal, a pequena Isa dirigiu-se para
casa, mas não tomou lanche nem almoçou. Foi direto para o banheiro e lá
permaneceu por um bom tempo. A cozinheira da pensão de sua mãe, em vão,
tentou fazê-la comer. Isa retornou à escola.
No mesmo dia, mais tarde, antes do
final da aula, toda a escolinha de Planalto testemunharia um
terremoto. Pedro Júlio, o Delegado, literalmente enfezado, ao tomar
conhecimento do fato, obrigou a direção da escola a convocar para fora do
prédio todos os professores e suas classes. Ali, exorbitando do cargo,
mesclou sua indignação de pai com a condição de autoridade policial, e expôs
o professor a uma situação vexatória, passando-lhe a maior bronca, em
público, por negar à sua filha o direito de ir ao banheiro. Isa, em seu
mundinho de conceitos pueris, sentia-se orgulhosa, diante de todos, e
justiçada.
No dia seguinte, o professor Murilo
determinou, radicalizando:
– A partir de hoje, ninguém mais
precisa pedir para sair da classe, tomar água ou ir ao banheiro! Basta
chegar e dizer: “Seu Murilo, eu vou lá fora”. Eu não quero mais nem saber o
que vocês vão fazer lá fora!
Dito e feito! A partir daquele dia,
os alunos deitaram e rolaram. A todo momento, alguém se levantava e dizia ao
Murilo:
– Seu Murilo, eu vou lá fora.
Inclusive a pequena Isa,
naturalmente!
– Seu Murilo, eu vou lá fora.
Murilo só dava uma olhada, com
cara de mau-humor.
Foi uma pândega!
Em seu processo de amadurecimento,
Isa compreenderia, com o tempo, que Pedro Júlio, embora tendo o direito de
reclamar como pai, abusara de sua função de Delegado, pois os assuntos da
Educação competem a outras formas de autoridade.
Mas a lembrança do orgulho sentido
por ver-se tão calorosamente defendida por aquele pai-leão permaneceria
indelével para a pequena Isa, ao lado de tantas outras situações vividas a
seu lado, folclóricas, divertidas, bizarras, irreverentes, inesquecíveis...
Anos depois, na juventude,
assistindo à novela “O Bem Amado”, de Dias Gomes, Isa recordar-se-ia com
saudades de seu pai, o Delegado Pedro Júlio, suas extravagâncias, seus
hábitos peculiares, especialmente o estalar dos chicotes e o repicar das
esporas:
– Réc, réc, réc, réc...
Oriza Martins Pinto
Há
outras histórias curiosas envolvendo do Delegado Pedro Júlio, as quais serão
contadas em novas oportunidades. |